A Receita Federal prepara uma grande reorganização na sua estrutura interna que vai mexer com o atendimento aos contribuintes e a dinâmica de trabalho dos servidores. O secretário Robinson Barreirinhas e subsecretários têm feito apresentações internas sobre a proposta.
Estão em elaboração os documentos para oficializar as mudanças, como uma portaria ministerial, que altera o regimento interno, e um decreto, para reformular a estrutura.
Segundo apresentações que detalham a proposta, a que a reportagem teve acesso, haveria o fechamento de agências em vários pontos do país, a criação de novos organismos para redistribuir a fiscalização de grandes, médias e pequenas empresas e muito mais digitalização, inclusive com a ampliação de sistemas de reconhecimento visual nas alfândegas, o que vai reduzir a demanda por pessoal e a necessidade de concursos.
A reorganização para um novo modelo de fiscalização é ampla.
No caso de grandes contribuintes, com receita bruta anual a partir de R$ 300 milhões, haverá uma redistribuição nacional e setorial.
Atualmente, esse grupo conta com duas unidades de Demac (Delegacia Especial de Maiores Contribuintes), uma em São Paulo e outra no Rio, que dividem o atendimento para o país.
A ideia é aumentar o número de Demacs para seis, com unidades em Manaus, Salvador, Florianópolis e mais uma especializada em São Paulo. Cada ponto atenderia um grupo de setores.
Manaus, por exemplo, cuidaria de Zona Franca, bem como de empresas das áreas de saúde, planos de saúde, produtos hospitalares, fármacos e cosméticos, além de serviços, como água, esgoto e educação.
Empresas de calçado ficariam com a unidade da Bahia. Agricultura, pecuária e supermercado, para citar alguns exemplos, em Florianópolis, e mineração, óleo e gás, no Rio de Janeiro.
Uma Demac de São Paulo trataria de setores como automotivo, construção civil e telecomunicações, enquanto uma outra Demac seria dedicada a instituições financeiras e seguros.
Pessoas que acompanham o processo dizem que o governo busca com a setorização ficar mais próximo do contribuinte e abrir o diálogo antes que se forme o litígio, mas especialistas querem ver o funcionamento na prática.
“Essa reorganização pode resolver internamente para a Receita, mas a distribuição das Demacs está desconectada da realidade dos setores econômicos”, afirma a advogada Thais De Laurentiis, sócia do Rivitti e Dias Advogados e ex-conselheira do Carf (Conselho de Administração de Recursos Fiscais), última instância de julgamento de questões tributárias na administração federal.
As mudanças são significativas também para a fiscalização de pequenas e médias empresas.
Hoje, esse contribuinte é fiscalizado pela DRF (Delegacia da Receita Federal) da sua regional. Existem dez regionais no país. Pela proposta, a estrutura ganharia mais musculatura.
Seriam criadas dez unidades, uma para cada regional, de um órgão batizado de Defis, Delegacia de Fiscalização. Haveria também um conjunto ainda não definido de delegacias para cuidar de arrecadação e cobrança, que vai ter o nome de Derat (Delegacia de Administração Tributária).
Seriam instituídas duas Deris, delegacias especializadas em gerenciamento de risco, para fazer a seleção de contribuintes para a fiscalização. Uma tende a ficar no Rio Grande do Sul, e a outra, em Minas Gerais.
A advogada Vanessa Canado, coordenadora do Núcleo de Pesquisas em Tributação do Insper, diz que a iniciativa vai na direção certa se houver a legítima intenção de resolver os problemas tributários criados pelo Simples, por exemplo. Uma mesma empresa pode ter inúmeros CNPJs para não crescer e perder os benefícios, mas a Receita não tem atuado nessa questão.
“Não existe uma fiscalização efetiva para pequenas e médias empresas, e espero que essa nova divisão de inteligência atue de fato no cruzamento de informações para desfazer o mundo de condomínios do Simples”, diz ela.
Canado está tocando uma ampla pesquisa que busca justamente propor uma reorganização da Receita Federal.
Já foi identificada a necessidade de separar a área que faz as normas das atividades como administração tributária, fiscalização e julgamento de autos de infração. O grupo avalia órgãos do gênero em vários países. O primeiro relatório deve sair em dezembro.
Aduanas perdem funções
A reestruturação em curso na Receita brasileira também mexe com a fiscalização do comércio internacional.
Atualmente, 29 alfândegas contam com efetivos para atendimento presencial, executam atividades de despacho, e algumas delas fazem fiscalização regional após o despacho. Existem duas Decex (Delegacias de Comércio Exterior) que focam esse trabalho de fiscalização a posterior.
Na mudança, as alfândegas perderiam as atribuições de fazer o exame dos documentos e dos despachos e também não cuidariam da fiscalização após despacho. Essas áreas em fronteiras, portos e aeroportos, receberiam um reforço para monitoramento digital, com câmeras e outros sistemas.
A expectativa é de queda na demanda de servidores nas aduanas.
Para reforçar a segurança, seriam criadas 11 unidades de uma nova área, a Derep (Delegacia de Repressão), uma por região, com São Paulo contando com duas. Trata-se daquelas equipes que dão batidas em veículos e estabelecimentos suspeitos de contrabando.
Em paralelo, o atendimento e o monitoramento digital de documentos seriam reforçados na Decex, cuja estrutura cresceria para sete unidades. Elas realizariam gerenciamento de risco, exame documental dos despachos aduaneiros das diversas alfândegas e as fiscalizações pós-despacho.
Duas dessas Decexs podem ser consideradas “super-regiões fiscais”. Uma condensaria o Nordeste. Em outra, Minas Gerais seria absorvida pela regional da área de Brasília, assim, as atividades da alfândega de Belo Horizonte passariam para a capital federal, por exemplo.
Especialistas ouvidos pela reportagem afirmam que, apesar de estarem sendo criados novos órgãos, o modelo tende a reduzir a capilaridade e levar a uma maior centralização, especialmente no que se refere às aduanas. Alguns ponderam que essa organização pode elevar o risco de corrupção.
A Receita não deu entrevista ou detalhes, mas em nota confirmou que há uma reestruturação em curso para modernizar a estrutura, dar mais eficiência e melhorar o atendimento ao contribuinte.
“Os debates ainda estão em curso e os desafios são maiores num cenário de forte redução do quadro de pessoal, agravado pelo período de quase dez anos sem a realização de concurso público“, diz.
Segundo a Receita, os servidores federais estão participando das mudanças, por meio das superintendências e dos sindicatos.
Mudança polêmica
Os servidores, no entanto, têm versão diferente da apresentada pela Receita. Contam que o processo ocorre de cima para baixo e que as mudanças buscam adequar a estrutura à falta de pessoal.
“Não somos contra uma reestruturação na Receita. A instituição precisa continuamente se adequar à dinâmica da economia e da sociedade. Mas uma mudança em um órgão dessa envergadura precisa ser pensada e criticada pelas pessoas que constroem essa instituição. Auditores fiscais com anos de expertise não participaram do processo. As chances de dar errado são muito grandes”, afirma Isac Falcão, presidente do Sindifisco Nacional (Sindicato dos Auditores da Receita Federal do Brasil).
“Esses projetos foram gestados nos governos Temer e Bolsonaro, e esse governo está recebendo sem a crítica necessária. Pela forma como o processo vem sendo conduzido, fica a sensação de que a atual gestão está seguindo aquele modelo de enxugamento proposto por Paulo Guedes, com pouca atenção às consequências.”
Pelas estimativas da categoria, o déficit de pessoal é de 57%. Cerca de 1.400 auditores e 800 analistas já podem se aposentar, e a saída deles levaria a uma queda adicional de 17% no quadro.
A própria Receita diz que há 7.132 auditores fiscais na ativa, e 12.423 postos vagos nessa função. No caso de analista tributário, são 5.792 trabalhando, e 10.677 vagas abertas.
Um dos desafios da reposição é a alta qualificação e o nível salarial. Um concurso foi aberto para preencher 699 vagas, com salários iniciais de até R$ 21 mil. No dia 11 de outubro, porém, a Justiça suspendeu a seleção por divergências sobre questões da prova.
Segundo o economista Felipe Drumond, consultor da ONG República.org, especializada em serviço público, é fato que o trabalho da Receita é cada vez menos abrir caixas para inspecionar carga e mais análise de dados, mas é preciso ter cuidado.
“Existem métodos para avaliar a demanda nesse ambiente e o governo tem ferramentas técnicas para dimensionar isso”, afirma. “A Receita precisa fazer essa análise com transparência.”