A um ilustre professor paulista, emérito perito contábil judicial, autor de obras excelentes, enviado foi por mim o artigo “A nova Contabilidade tão antiga” que recentemente produzi, solicitando críticas e sugestões; isso porque muito respeito o referido colega, e, também, por nunca haver-me entendido como dono da verdade; opiniões úteis se requerem aos quem têm qualidades intelectuais para dá-las.
Observação, raciocínio, reflexão, experiência, sempre foram fatores que rigorosamente procurei ter como instrumentos na conquista da cultura.
De forma cavalheiresca o eminente escritor me respondeu:
Li o artigo. Sucinto e objetivo. Não tenho contribuições, apenas algumas dúvidas que sempre me atormentam:
. Porque a história e especialmente a da contabilidade é frequentemente olvidada?
. Ao que parece, as práticas contábeis na óptica de alguns seriam incompatíveis com o desenvolvimento científico da contabilidade?
. Porque da fraude intelectual? Os “antigos” são menos lógicos que os pós-modernos?
Considerada a importância das perguntas e a dos argumentos que devem sustentar a resposta entendi que a questão merecia outro artigo; estes textos presentes então foram escritos como homenagem e reconhecimento de minha admiração pelo ilustre mestre aludido, e, também, aos meus prezados leitores.
SOBRE A CULTURA DE MATÉRIA HISTÓRICA
A falta de conhecimento sobre a História marginaliza um profissional no campo da cultura; não se consegue bem avaliar o presente sem o conhecimento do passado.
Nem todas as entidades de ensino, entretanto, têm-se preocupado em oferecer aos universitários e aos técnicos uma formação especializada sobre as ocorrências pretéritas que edificaram as bases da ciência contábil.
Também, poucos foram os intelectuais em nossa classe que realmente se dedicaram a produzir escritos sobre doutrinas e as suas evoluções no campo da ciência, o que muito prejudicou e ainda dificulta a difusão de tal conhecimento.
Enquanto os advogados em seus cursos de formação universitária atribuem esmerado tratamento à Filosofia e a História das Doutrinas, nem todas as instituições de ensino da Contabilidade valorizam essas imprescindíveis matérias.
Essa uma forte razão do por que muitos consideram como “novidade” o que há séculos já havia sido ensinado e difundido.
No Brasil, também são raras as bibliotecas de Faculdades de Ciências Contábeis que possuem as obras clássicas de nosso conhecimento como as de Villa, Forni, Marchi, Cerboni, Rossi, Besta, Masi, Ceccherelli, Zappa, Schmalenbach, Dumarchey, Paton, Lopes Amorim, e, mesmo dos modernos e grandes valores como: Pirla, Bouzada, Garcia, Onida, Garney, Giannessi, Amaduzzi, Dominicis, Melis, Riera, Ferrero, Antinori, Antoni, Amodeo, Azzini, Guatri e tantos outros intelectuais que influíram na história do conhecimento contábil.
As deficiências do ensino, da difusão, a falta de estimulo à cultura histórica e filosófica, tudo isso contribuiu e ainda enseja que o “olvido” suceda, deixando vulneráveis muitos milhares de profissionais e universitários quanto ao discernimento necessário para julgar sobre o “novo” e o “velho”, sobre o “verdadeiro” e o “falso”.
Parafraseando Denis Diderot (em Obras Filosóficas) é possível lembrar que “nada é mais apto para fortalecer a má formação cultural que os débeis ou falsos motivos de uma equivocada difusão ou ensino sobre um procedimento”.
As próprias entidades de classe não deram o destaque necessário à pesquisa e difusão das doutrinas científicas e de suas pertinentes histórias; decorreram muitas décadas até que o próprio Conselho Federal de Contabilidade praticasse uma intervenção na área, só ocorrida quando da fundação do Museu de Contabilidade e na administração de Maria Clara Cavalcante Bugarim quando começou a editar matéria histórica e se realizou apoiou a pesquisas de tal gênero.
SOBRE A INCOMPATIBILIDADE ENTRE NORMAS E CIÊNCIA
Nem todas as normas contábeis são em suas bases fieis à ciência contábil.
As que receberam o nome de “internacionais”, por seguirem a só a um modelo, desprezando todos os demais, produzidas sob o controle de um pequeno grupo em uma entidade privada (IASB) sediada na Inglaterra, desmerecem a intitulação que se lhes atribui sob o aspecto cultural, ferindo ainda preceitos não só da doutrina cientifica, mas, de lógica.
Não existe, também, ainda, a unanimidade ou “convergência” que alguns órgão de difusão têm noticiado; até o presente momento a Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos (SEC) ainda não aderiu ao modelo da IASB e até tem admitido abandonar tal projeto (como o noticiado no CFO dos Estados Unidos em 16 de outubro de 2009 sob o título “IFRS Returns to the Front Burner”).
Perante a maior Bolsa de Valores do mundo a matéria ainda está sendo estudada, ao contrário das catadupas de normas que apressadamente no Brasil se editam e de mentirosas informações veiculadas sobre uma pacifica convergência. Na realidade a questão está a requer prudência, essa que a diretora de normas Silvia, do Banco Central do Brasil há dias evocou, segundo o noticiado e o que na Comunidade Européia tem sido evocado por administradores e ilustres contadores (mencionados em vários artigos meus que se encontram em minha página www.lopesdesa.com.br e que em outras se acham igualmente difundidos).
Não há, pois, ainda, a uniformidade propagada e os procedimentos que estão sendo impostos no Brasil contrariam o próprio texto da lei 11.638/07 por copiarem e simplesmente traduzirem o que a IASB estabelece; a lei não fixa ostensivamente nome de qualquer entidade, mas, sim, de forma genérica determina que se siga o que é aplicado nos mercados internacionais; se essa aplicação uniformizada ainda não existe, se o propósito é a convergência, se a maior Bolsa do mundo ainda a discute é fácil concluir, sem esforço de muitos neurônios, que é precipitada a adoção de qualquer modelo.
Agrava a situação o fato do modelo da IASB possuir sérios defeitos.
Como entender a adoção de um conceituado como “valor justo” sendo o “realizável” e impor a classificação como ativo de um “arrendamento mercantil” que não pode ser realizado?
Não seria o caso de registrar o valor de um prédio alugado no imobilizado se as normas justificam a pratica do registro do arrendamento em razão do “uso”?
Fere a lógica o aceitar-se uma coisa e deixar-se de aceitá-la ao mesmo tempo.
É racional admitir o ativo como “recurso” como o fazem os denominados IRFS se não existe geração espontânea de valor, se ele é efeito de uma causa que é o capital próprio ou o de terceiros? Se ativo é consequente e não antecedente como pode ser “recurso”?
É possível entender a perda como despesa como o fazem os “conceitos” usados nas ditas normas?
È natural aceitar em um balanço presente fatos que só possuem probabilidade futura de ocorrer se as próprias normas consagram o dito valor dito justo como sendo o de realização efetiva?
É sincero admitir-se como variação de resultados por “ajustes” o que é manipulável pela mídia, como o é o “valor de mercado”? Se aquilo que se publica pode ser fruto do que se paga a um veículo de difusão tendência não é a de que os valores “realizáveis” sejam frutos de simples influências temporárias sobre as pessoas, financiadas por grupos de especulação?
Mais que essas interrogações a realidade nos mostra historicamente que foram ativos podres e lucros fantasiosos os que alimentaram a crise financeira atual, encobertos por balanços falsos, apoiados em normas, essas que continuarão a agasalhar tais anomalias se não corrigidas, ensejando novas crises.
Os fatos neste artigo referidos, todavia, são apenas algumas das incompatibilidades entre a ciência (preocupada com a realidade objetiva) e a norma (preocupada com a especulação bursátil) o que deveras muito nos preocupa.
SOBRE AS FRAUDES E AS POSIÇÕES ANTIGAS
Segundo denunciou o Senado dos Estados Unidos na década de 70 fraudes foram urdidas sustentadas por um tripé tendo por bases os especuladores, as transnacionais de auditoria e as entidades de classe, produzindo normas para mascarar os balanços, o que foi denominado pejorativamente como “Contabilidade Criativa”.
Os anos se passaram e não se corrigiu o curso cruel desse conluio, amparado que esteve por pressão na mídia e sobre o poder público, este que cedeu ao impacto; foi em razão do poder político estatal haver cedido que a atual crise e as fraudes sucederam.
A Contabilidade foi “usada”, como continua sendo, para a maquiagem dos balanços nas sempre oscilantes curvas das cotações dos títulos nas Bolsas de Valores.
Muitas falhas de altíssima gravidade existem, como algumas das já referidas, e, as normas do IASB são fracas e ensejam a prática da fraude, segundo o noticiário do CFO referido, com o qual estou de pleno acordo.
Os clássicos da doutrina científica contábil, muito ao contrário do que está hoje ocorrendo, defenderam a “verdade”, a sinceridade da informação, a exposição da “realidade objetiva”; como exemplo, basta analisar o que Vincenzo Masi discorreu em sua obra “Filosofia della Ragioneria” para que se tenha convicção sobre os preceitos não só científicos, mas, rigorosamente lógicos e éticos resguardados pelos grandes intelectuais de nossa disciplina.
A intensificação das fraudes, portanto, adveio não só do mau uso da Contabilidade, mas da decadência moral que assolou o mundo no século XX em decorrência de um capitalismo canibal e da fraqueza de governos que por tal sistema se deixaram envolver, como denuncia o notável pensador J. F. Lyotard em sua iluminada obra “A Condição posmoderna”.
Segundo o conceituado jornal francês “Le monde” de 17 de outubro deste 2009 no setor de economia em Plusieurs grands noms de la finance américaine accusés de délits d’initiés”, a especulação continua à solta, sem respeito a moral e à ética, baseada em informações privilegiadas e manobras de resultados de empresas; só agora parece que as manigâncias dos especuladores começam a ser investigadas; o procurador federal de New York Preet Bharara declarou, segundo a noticia referida, que finalmente a justiça norte americana está decidida a enfrentar a questão como criminal, a semelhança do trafego de drogas e terroristas.
Como nesse complexo o mau uso da Contabilidade contribuiu e prossegue contribuindo (segundo o Senado já denunciara há tempos) para essa degradação moral, certamente um bom sistema de investigação haverá de reconhecer que se não forem controladas as normas, se a elas não se restringir o poder da subjetividade, os problemas continuarão a existir.
Balanços com avaliações arbitrárias, subjetivas, apresentando ativos não realizáveis e resultados fantasiosos são coisas que as normas do IASB asseguram, com grande risco para o público em geral; embora tidas como uniformes nos “mercados internacionais”, como pacifica “convergência”, na realidade essa ainda não ocorre (segundo o noticiário do CFO já citado); a simples tradução, pois, das normas do IASB, como se está fazendo no Brasil, está em conflito com a própria lei 11.638/07 se nos ativermos a letra da mesma, pois, a referida não estabelece que se deva seguir essa ou aquela entidade, mas, sim ao que em geral está aplicado, o que não é ainda o caso das IRFS.
O que está errado, em meu modo de entender, portanto, não é tentar uma harmonização e praticá-la, mas, sim a forma como a matéria está sendo conduzida ao sabor de interesses de pequenos grupos, sob pretextos democráticos deveras questionáveis, sem apoio da ciência e falta de respeito ao regime legal.
*Autor: Antônio Lopes de Sá
www.lopesdesa.com.br
Contato: lopessa.bhz@terra.com.br
Doutor em Letras, honoris causa, pela Samuel Benjamin Thomas University, de Londres, Inglaterra, 1999 Doutor em Ciências Contábeis pela Faculdade Nacional de Ciências Econômicas da Universidade do Brasil, Rio de Janeiro, 1964. Administrador, Contador e Economista, Consultor, Professor, Cientista e Escritor. Vice Presidente da Academia Nacional de Economia, Prêmio Internacional de Literatura Cientifica, autor de 176 livros e mais de 13.000 artigos editados internacionalmente.