Longe de politizar a discussão e desvirtuar o cerne da questão, o Brasil vem passando por uma crise de insegurança jurídica sem precedentes.
A despeito da tripartição dos poderes, o diálogo e muitas vezes a tensão entre o Judiciário e o Legislativo por si só, não são capazes de ensejar dúvidas de suas independências, afinal de contas, os poderes são harmônicos entre si e as disputas são características naturais do sistema de divisão de poderes.
Entretanto, com o máximo respeito, o Poder Judiciário não pode ser uma instituição representativa como o Legislativo, sob pena de usurpação de poderes e afronta ao sistema tripartite.
Nesse contexto, há muitos anos, a insegurança jurídica vem dificultando o desenvolvimento econômico brasileiro e, nos últimos tempos, se tornou um grande empecilho não apenas para os investidores, mas para preservação das empresas e empreendedores que se arriscam no mercado nacional.
E isso ocorre pelas milhares de normas e regras sobre determinados assuntos, assim como os respectivos contratos firmados, serem relativizados perante o Poder Judiciário, colocando em xeque não apenas a evolução econômica, mas a própria saúde financeira das empresas e respectivos empreendedores que são diretamente afetados.
No cenário atual, algumas decisões específicas e que atraíram o clamor público vêm impactando diretamente o mercado da saúde suplementar, agravando ainda mais a crise do setor que, como amplamente debatido, ocasionará demissões em massa, falta de investimentos e, ainda, uma majoração de preço para os consumidores (destinatários finais dos serviços) que, afinal de contas, pagam a conta.
É o que ocorreu com a Lei 14.434/22[1] que dispõe sobre piso do enfermeiro, técnico, auxiliar e parteira.
Isso, porque após publicada, a Lei passou a ser objeto de discussões, tendo o STF, através do Ministro Barroso (relator), deferido a medida para suspensão dos seus efeitos até que os impactos reais da lei no mercado fossem esclarecidos.
Após o Governo anunciar a adoção de medidas para o financiamento do piso para os profissionais que atuam no SUS, o Ministro revogou parcialmente a medida e destacou 2 pontos importantes. O primeiro, que o financiamento da União não seria suficiente e a implementação do piso deve ocorrer nos limites dos recursos recebidos e, o segundo, que o financiamento não atenuaria o impacto no setor privado, autorizando, pois, a discussão para fixação do piso em negociações coletivas – com o objetivo de não ocorrer diferença nas tratativas entre funcionários do setor público e privado.
Nos primeiros dias de julho, a votação encontrava-se empatada (2x2x2), ou seja, o voto acima destacado do Ministro Barroso (relator), foi acompanhado pelo Ministro Gilmar Mendes. O Ministro Dias Toffoli, cujo voto foi acompanhado pelo Ministro Alexandre de Moraes, concordou quase que integralmente com a decisão do relator, exceto ao propor a regionalização do piso para funcionários celetistas, dando maior autonomia às partes e fazendo valer a disposição legal de que o negociado deve prevalecer sobre o legislado.
A Ministra Rosa Weber, por sua vez, acompanhou o voto do Ministro Edson Fachin defendeu o cumprimento integral da Lei 14.434/2022, mediante o pagamento imediato dos valores em todo território brasileiro.
Na sequência, a Ministra Carmem Lúcia também acompanhou o voto do relator Barroso e o Ministro Fux, o voto do Ministro Toffoli, com um acréscimo.
Assim, o Supremo Tribunal Federal (STF) definiu que o piso nacional da enfermagem deve ser pago aos trabalhadores do setor público pelos estados e municípios na medida dos repasses federais – e que será proporcional à carga horária de 8 (oito) horas diárias e 44 (quarenta e quatro) horas semanais de trabalho, de modo que, caso a carga seja menor, o valor será proporcionalmente reduzido.
Ademais, por voto médio, já que registradas 3 (três) correntes de voto em relação ao setor privado, restou estabelecida a exigência de negociação sindical coletiva como requisito procedimental obrigatório, contudo, caso não as partes não cheguem a um consenso, o piso deve ser aplicado nos temos da lei.[2]
Nesse contexto, a discussão sobre o piso da enfermagem está longe de ser pacificada, afinal de contas, ao que tudo indica – sendo certo ou não -, a decisão permitirá que os valores sejam inferiores ao previsto na Lei, além de condicionar a uma jornada de 8hrs diárias e 44hrs semanais.
Os mesmos problemas, dentre eles a insegurança jurídica decorrente da discussão do piso da enfermagem, vêm ocorrendo com o Rol Taxativo da ANS, quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ), após grande clamor público, decidiu que embora continue sendo taxativo, permite a cobertura de procedimentos não previstos na lista[3].
Posteriormente, ainda no clamor público e em ano eleitoral, foi publicada a Lei 14.454/22[4] que alterou parcialmente o art. 10 da Lei 9.656/98, permitindo formalmente a cobertura de procedimentos em determinadas hipóteses.[5]
Contudo, os problemas estão longe de serem solucionados, acarretando prejuízos inestimáveis a todos os envolvidos – beneficiários e, sobretudo empresas de planos de saúde, afinal de contas, a despeito de taxativo, o rol permite excepcionalidades.
Ao ensejo, seguindo a mesma lógica das discussões anteriores, no final de junho (23.6), o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o tabelamento de dano moral previsto nos arts. 223-A e 223-G, § 1º, I, II, III e IV, §2º e §3º da legislação trabalhista, não pode ser considerado como teto para indenizações.
Assim, de acordo com o Ministro Gilmar Mendes (relator), os limites impostos na CLT pela Reforma Trabalhista (Lei 13.467/2017) para fixação do dano moral devem apenas ser utilizados como critério de fundamentação, não impedindo, porém, a condenação em valores superiores àqueles fixados.
Portanto, em todas as discussões abordadas, consta-se evidente insegurança jurídica e prejuízos inestimáveis à economia – em diferentes setores, incluindo o da saúde privada.
Então, o que se esperar de um país onde o “piso salarial” não representa o mínimo, o “rol taxativo” permite excepcionalidades e o limite imposto pelo “teto” na CLT pode ser ultrapassado?
Respondo: Muito trabalho para os departamentos jurídicos, imprevisibilidade jurídica/econômica e financeira, inúmeros desafios para quem empreende e, sobretudo, um ambiente de negócios extremamente hostil – afastando investimentos que geram empregos, renda e desenvolvimento e criando óbices e gastos.
*Advogado, sócio do escritório M3BS
[1] “Altera a Lei nº 7.498, de 25 de junho de 1986, para instituir o piso salarial nacional do Enfermeiro, do Técnico de Enfermagem, do Auxiliar de Enfermagem e da Parteira.”
[2] Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=509985&ori=1#:~:text=Ap%C3%B3s%20julgamento%20no%20Plen%C3%A1rio%20Virtual,na%20medida%20dos%20repasses%20federais - acesso dia 1.8.23
[3] Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/08062022-Rol-da-ANS-e-taxativo--com-possibilidades-de-cobertura-de-procedimentos-nao-previstos-na-lista.aspx - acesso dia 1.8.23
[4] “Altera a Lei nº 9.656, de 3 de junho de 1998, que dispõe sobre os planos privados de assistência à saúde, para estabelecer critérios que permitam a cobertura de exames ou tratamentos de saúde que não estão incluídos no rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar.”
[5] “art. 10 (...)
- 13. Em caso de tratamento ou procedimento prescrito por médico ou odontólogo assistente que não estejam previstos no rol referido no § 12 deste artigo, a cobertura deverá ser autorizada pela operadora de planos de assistência à saúde, desde que:
i - exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou
ii - existam recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), ou exista recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais.” Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/L14454.htm - acesso dia 26.6.23