Na minha atividade como professor do Departamento de Ciências Contábeis e Atuariais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, leciono para alunos dos Cursos de Ciências Contábeis e Administração. Uma de minhas Disciplinas é Técnica Comercial e abordo em uma das Unidades do Currículo o tema Títulos de Crédito. Com certa perplexidade (já deveria ter me acostumado) quando pergunto se alguém sabe o que é uma duplicata ou mesmo se já tenha visto alguma vez esse documento, obtenho apenas cerca de 5 a 10 % de respostas positivas.
Talvez o leitor esteja se perguntando: “E daí ? o que tem isso de importante ?”
A importância vem do desconhecimento de um título de crédito fundamental nas operações comerciais de compra e venda a prazo, cujo documento básico representativo do valor e crédito parcial ou total da transação é exatamente expresso através de uma ou mais simples (nem tão simples assim) duplicatas.
Para escrever sobre esse documento tão importante na vida das empresas, é necessário primeiro entender o que é um título de crédito.
O crédito está ligado à idéia de confiança, um ato de fé do credor para com o devedor, conforme bem demonstra sua origem do latim – creditum, credere –.
Tamanha era a importância dada a esse aspecto da confiança que no antigo Direito Romano, base do nosso Direito Brasileiro e de outras nações, se um devedor não cumprisse sua obrigação assumida, o credor não poderia valer-se do patrimônio do devedor para ressarcir seu prejuízo, mas poderia, em compensação, decidir entre duas alternativas sui generis: vender o devedor em praça pública ou matá-lo, também em praça pública, para deixar claro à comunidade local que aquele sujeito falhou com seu compromisso de confiança. Imaginem se essa prática ainda estivesse em vigor ! Teríamos um cadafalso em cada frente de loja ou banco !
Ao contrário do que poder-se-ia supor, o crédito não é um agente de produção de riqueza mas sim de transferência de riqueza de A para B. É um instrumento de circulação do crédito, fazendo o girar por diversas mãos e cumprir seu papel.
O Novo Código Civil Brasileiro diz em seu artigo 887 que título de crédito é ... documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido ...
Para compreensão do sentido desse conceito dado pelo Código Civil vamos extrair e explicar os três princípios fundamentais dos títulos de crédito nele contido.
Princípio da literalidade – do Latim, lettera esse princípio significa que o título de crédito vale por aquilo que nele estiver escrito, de acordo com os preceitos da lei que o criou. Não se admitem nos títulos palavras escritas que contrariem esses preceitos, sob pena de nulidade.
Princípio da autonomia – por esse princípio o título de crédito se desvincula da causa que lhe deu origem, devendo ser honrado seu pagamento ao possuidor de direito. Um exemplo bem simplório ajudará a explicar melhor esse princípio. Paulo emitiu um cheque (que também é um título de crédito) em favor de Roberto para pagamento de uma dívida entre eles. Roberto endossou o título para Marcelo. Paulo, emitente do cheque, é inimigo de Marcelo, mas nem por isso poderá negar o pagamento do cheque endossado.
Princípio da cartularidade – também originado do Latim, cártula, que significa carta, papel, documento, esse princípio diz que o título de crédito obrigatoriamente deve se materializar em um documento para que possa ser exigido o crédito nele representado. E esse certamente é o princípio que mais causa problema nos dias atuais no que tange à duplicata, como veremos logo adiante.
Voltemos agora à duplicata.
A duplicata é uma criação genuinamente brasileira surgida no Código Comercial Brasileiro de 1850, artigo 219. Surgiu como instrumento para garantir o cumprimento da obrigação assumida e fazer valer os direitos do comprador e vendedor, por um processo coativo enérgico. Nas vendas a prazo, o vendedor cumpre a sua obrigação de entregar o bem vendido. O comprador só realizará a sua obrigação de pagar posteriormente, conforme os prazos acertados previamente. Há entre o vendedor e o comprador um pacto de confiança, por meio do qual se usa o crédito para a efetivação da compra e venda.
A duplicata ainda segue os ditames da Lei 5.474 - 18/07/1968. Segundo essa lei de caráter federal, em seu artigo primeiro, o vendedor poderá, nas vendas com prazo não inferior a 30 dias, extrair fatura para apresentação ao comprador. O artigo segundo complementa dizendo que, à opção do credor, poderá ser extraída uma duplicata para circulação do crédito.
Não se admite nas leis brasileiras que tratam de títulos de crédito qualquer outra espécie de título para representar a compra e venda que não seja a duplicata. Por isso, muitas pessoas que assinam promissórias em lojas como garantia de crediário acabam se complicando e, às vezes, tendo que pagar novamente por algo que já pagaram, pois a nota promissória, pelo princípio da autonomia, se desvincula da causa que lhe deu origem, não tendo como vinculá-la à compra efetuada e paga pelo carnê das prestações. Desse modo, fica o devedor com o carnê quitado, comprovando que pagou pela compra mas sem prova de pagamento da promissória, caso não a exija de volta na loja quando terminar o pagamento do carnê. É claro que judicialmente pode-se tentar esclarecer o fato, mas isso envolve custas processuais, advogado, e a possibilidade de perder o processo e ter que pagar a promissória assim mesmo.
A duplicata é uma cópia da Fatura, podendo esta ser desmembrada em quantas parcelas forem acertadas por ocasião da compra, através de várias duplicatas. Aqui cabe uma observação importante: A fatura é uma obrigação de cunho comercial, enquanto que a nota fiscal é uma obrigação de caráter fiscal, servindo como instrumento fiscalizador das três esferas do fisco – municipal, estadual e federal.
Mas voltemos ao início deste artigo onde demonstrava minha perplexidade com a falta de conhecimento dos meus alunos a respeito da duplicata. Vou tentar explicar como gradativa e inadvertidamente aconteceu este processo de descrédito e desuso da duplicata.
Na década de 80 exerci funções de gerente contábil e financeiro em um grande estaleiro de construção naval. Uma de minhas atribuições era gerenciar a Tesouraria, onde tive muito contato com duplicatas, tanto a pagar como receber. Pude constatar na prática como a lei das duplicatas funcionava ou, pelo menos, como deveria funcionar. Após a venda efetivada conforme negociação prévia entre comprador e vendedor, este procederá à entrega das mercadorias objeto da transação com a respectiva emissão da Nota Fiscal e da Fatura (ou de ambas no caso de NF/Fatura). Para simplificação do raciocínio, suponhamos que o negociado tenha sido pagamento a 30 dias após a emissão dos documentos.
A lei estabelece prazos para que a duplicata seja apresentada ao comprador (devedor):
- até 30 dias da emissão, se enviada diretamente pelo vendedor
- até 10 dias da data de recepção por representantes ou bancos
Fixa ainda o prazo de 10 dias após a apresentação ao devedor para que este devolva a duplicata com o devido aceite ou com declaração expressa justificando a recusa do aceite.
Aqui está o principal motivo para a mudança de hábitos dos empresários e que acabaram modificando totalmente o uso da duplicata em nossos dias.
O aceite é uma figura jurídica que torna a dívida líquida e certa. O procedimento correto no trato com duplicatas, títulos de crédito que são emitidos pelo credor, que o devedor confira o mesmo e dê aceite, concordando integralmente com os termos descritos no título. Para isso a lei fixou prazo para remessa do credor ao devedor e prazo para devolução do devedor ao credor com a assinatura e data do aceite, abaixo da seguinte frase:
Reconheço a exatidão desta duplicata de Venda Mercantil na importância acima que pagarei à ___(nome do credor)_________ ou à sua ordem, na praça e vencimento indicados.
Na prática, o comprador (devedor) ao assinar este reconhecimento torna a dívida líquida e certa, ou seja dá o aceite ao título.
Abaixo segue a imagem de uma típica duplicata com as indicações de seu conteúdo: