Curioso ver como o princípio da segurança jurídica pode ser utilizado para suportar múltiplas interpretações e ser distorcido a fim de servir como panacéia argumentativa a justificar posições jurídicas conflitantes.
Um exemplo recente e emblemático foi o julgamento em que o Supremo Tribunal Federal (STF) analisou a questão do prazo para os contribuintes pedirem a restituição de indébitos tributários. Estava em apreciação o art 4º da Lei Complementar (LC) nº 118, norma que permite a aplicação retroativa do art 3º da mesma lei complementar, o qual fincou o termo inicial do prazo quinquenal para a devolução de tributos pagos indevidamente no momento do adimplemento. Segundo o STF, o art 3º aplica-se a todas as ações ajuizadas após 9 de junho de 2005 (data em que a norma passou a vigorar), independentemente da data do indébito.
A primeira impressão é que o Supremo protegeu os contribuintes da retroatividade do art 3º da LC, prestigiando o princípio da segurança jurídica. No entanto, surge constatação diversa quando o julgado é analisado tendo em vista todo o histórico que envolve a questão jurídica.
Inicialmente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), após anos de debates, garantiu aos contribuintes que, verificado o indébito de tributos sujeitos ao autolançamento, o prazo para se pleitear sua devolução seria de cinco anos, o qual somente iniciaria após a homologação expressa ou tácita da administração em até cinco anos (tese dos cinco mais cinco).
A primeira impressão é que o STF protegeu os contribuintes
Com a edição da LC nº 118, o STJ novamente analisou a matéria, pontuando com firmeza que não é meramente interpretativa uma norma que não admite uma das interpretações possíveis das regras do CTN, máxime quando impede justamente a que havia sido consagrada pelo tribunal.
Assim, em respeito aos princípios da segurança jurídica e da separação dos poderes, a lei complementar não poderia retroagir. De acordo com a Corte Especial do STJ, é inconstitucional tal retroação, sendo que o novo prazo só se aplica para situações jurídicas ocorridas após a vigência da norma.
Em nosso ver, a preocupação do STJ em resguardar os pagamentos indevidos ocorridos antes da vigência da LC fez valer o princípio da segurança jurídica em favor dos contribuintes. Tal segurança, contudo, parece ter sido abalada pelo recente julgamento do STF, ao considerar que apenas os contribuintes que ajuizaram ações até a data da vigência da LC nº 118 não seriam afetados, ignorando a data do pagamento indevido como termo inicial do prazo prescricional.
Interessante é ver, em muitas passagens dos votos dos seis ministros do STF que rejeitaram o pedido da União de aplicação retroativa da norma, que o fundamento jurídico utilizado foi justamente o princípio da segurança jurídica, sendo que a interpretação que foi conferida conflita, em parte, com o que restou pacificado, à unanimidade, por 18 ministros da Corte Especial do STJ (composta pelos integrantes mais antigos do tribunal), também baseados no mesmo princípio.
Tal conflito fica evidente quando se verifica que os dez votos proferidos no âmbito do Supremo não possuem fundamentações concordantes. Afinal, dos seis votos vencedores, dois expressamente encamparam a posição do STJ, o que significa que apenas quatro concluíram que a LC repercutiria sobre as ações ajuizadas após 9 de junho de 2005, sendo que outros quatro entenderam pela ampla retroatividade da norma. Não houve, portanto, maioria em quaisquer dos entendimentos apresentados pelos ministros.
A gravidade da situação está justamente no quórum de votação, o que foi inclusive objeto de questão de ordem suscitada por alguns contribuintes contra o acórdão do STF. Isso porque, embora para o caso concreto não haja prejuízo algum (pois a demanda foi proposta antes de 9 de junho de 2005), o processo foi julgado na sistemática da repercussão geral, o que significa que os demais Tribunais do país deverão aplicar a orientação firmada pelo Supremo (art. 543-B, parágrafo 3º, do CPC).
Entretanto, para as hipóteses fáticas que não se enquadrem no caso julgado (i.e., ações ajuizadas após a vigência da lei para restituição dos dez últimos anos e pedidos administrativos de restituição/compensação), o precedente não pode ser aplicado pelos tribunais indistintamente. Afinal, como não houve quórum para a aplicação genérica do precedente, aos tribunais será autorizado nova apreciação do tema, em afronta à segurança jurídica e ao instituto da repercussão geral.
A discussão se torna mais complexa ante o evidente equívoco da tese segundo a qual o prazo de cinco anos para a restituição dos tributos sujeitos ao autolançamento se aplicaria para as ações propostas a partir de 9 de junho de 2005 - tese que já tinha sido superada há muito pelo STJ -, porque uma vez tendo o STF decidido pela irretroatividade do art. 3º da LC nº 118, a conclusão óbvia é a de que a nova regra apenas se aplica aos fatos ocorridos após sua vigência, e o fato previsto pela LC é o "pagamento antecipado" e não o exercício do direito de ação, ou seja, a LC apenas deve ser aplicada aos "pagamentos antecipados" ocorridos após 9 de junho de 2005.