Grande parte das negociações ligadas à cadeia do agronegócio tem o penhor agrícola como garantia ao adimplemento da dívida, nomeando-se um depositário fiel do bem oferecido em garantia. Daí a importância de um estudo mais apurado sobre o tema.
Até a consolidação do entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) no sentido de que o Pacto de São José da Costa Rica fora incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro com status de norma supralegal, de forma a restringir a prisão civil por dívida ao descumprimento voluntário e inescusável de prestação alimentícia, muito se discutia a respeito da legalidade da prisão civil do depositário infiel.
Alguns anos atrás, após a citação do devedor que simultaneamente figurasse como depositário de bens dados em penhor, se este não pagasse o débito ou depositasse a coisa empenhada, o juiz estava autorizado a determinar a prisão do devedor como depositário infiel - entendimento muitas vezes confirmado pelos tribunais.
Após a edição da Súmula Vinculante nº 25 do STF, restou pacificada a impossibilidade de decretação de prisão civil ao depositário infiel. No entanto, no âmbito civil, as demais consequências para o depositário infiel continuam valendo, como o dever de indenizar o credor caso haja a perda ou má guarda do bem objeto do depósito. Para tanto, deve ser comprovado que o depositário não foi diligente com o bem guardado ou não o restituiu quando solicitado pelo credor.
Contudo, pode o depositário escusar-se da obrigação de entrega do bem, desde que configurada a ocorrência de caso fortuito e força maior, cabendo ao depositário o ônus da prova.
Nos contratos garantidos pelo penhor agrícola, que têm por objeto safras pendentes, em formação ou futuras, muitas são as possibilidades de caso fortuito ou força maior, tais como intempéries e ataque de pragas na lavoura.
Todavia, o entendimento jurisprudencial majoritário deflagra que nas negociações ligadas à cadeia do agronegócio, as hipóteses de caso fortuito e força maior não configuram escusas para o inadimplemento da obrigação, tendo em vista que o risco é inerente ao negócio.
O depositário de commodity agrícola que a tenha desviado ou alienado sem o consentimento do credor, incorre na defraudação do penhor, devendo, além de indenizar o credor, responder pelo crime de estelionato. Dependendo da conduta do depositário ainda existe o risco de prisão no caso de prática de crimes tipificados no ordenamento penal.
Logo, restando comprovado que a pessoa nomeada como fiel depositária vendeu, onerou ou deu em pagamento bens sob sua guarda, poderá além de lhe ser exigida indenização pela perda do bem, responder pelo crime de estelionato.
Este entendimento é compartilhado em diversos julgados, a exemplo de um caso analisado pelo Tribunal Regional Federal da (TRF) 4ª Região (TRF4 - Apelação Criminal: ACR 8509 RS 2001.04.01.008509-2. Penal. Apelação Criminal. Estelionato do depositário infiel. Sacas de arroz desviadas. Sentença absolutória reformada. Condenação. Substituição da pena privativa de liberdade. Recurso provido).
Contudo, nas hipóteses em que tenha sido indicada uma pessoa jurídica como fiel depositária, sobre quem recai a responsabilização criminal? E no âmbito civil, poder-se-ia atingir o patrimônio dos sócios para o pagamento de eventual indenização?
Na esfera penal, encontramos grande divergência tanto na doutrina quanto na jurisprudência a respeito da possibilidade da prática de crime por pessoa jurídica. Nota-se, contudo, que mesmo para os que a admitem, restringem-na à prática de crimes contra a ordem econômica e financeira ou contra a economia popular e contra o meio ambiente, nos termos dos artigos 173, parágrafo 5º, e 225, parágrafo 3º, da Constituição Federal, respectivamente. Portanto, impossível a autoria do crime de estelionato por pessoa jurídica.
Além disso, caso fosse apurada a prática de crime imputando-se a autoria à pessoa jurídica, ser-lhe-ia aplicada pena compatível com a sua natureza jurídica, geralmente de cunho pecuniário, perdendo-se, assim, a força coercitiva de eventual pena privativa de liberdade.
No âmbito civil, em geral é o patrimônio em nome da pessoa jurídica que responde pelos atos por esta praticados. Existem, no entanto, hipóteses legais autorizadoras da desconsideração da personalidade jurídica, de forma a atingir-se o patrimônio pessoal dos sócios para o adimplemento de obrigações assumidas em nome da pessoa jurídica.
Assim, poder-se-ia ter decretada judicialmente a desconsideração da personalidade jurídica caso reste configurado o abuso de direito, o excesso de poder, a violação ao contrato social ou ao estatuto, a infração à lei e os fatos ou atos ilícitos. Logo, o desvio de commodity pelo fiel depositário configura ato ilícito, autorizador da desconsideração da personalidade jurídica.
Trata-se, porém, de medida excepcional, vale dizer, a regra é que prevaleça a autonomia patrimonial, sendo uma exceção a desconsideração da personalidade jurídica. Portanto, em havendo a intenção de fraudar, muitas das vezes, a pessoa jurídica dilapida seu patrimônio, transferindo-o aos sócios ou terceiros, dificultando o recebimento por parte dos credores.
Desta feita, muito embora exista o permissivo legal de que a pessoa jurídica seja indicada como fiel depositária, convém que os credores optem por eleger pessoas físicas, de forma a ter a possibilidade de cominação de pena de prisão pela prática de estelionato, bem como diminuir o risco quanto ao eventual esvaziamento de patrimônio.
A abolição da prisão civil do ordenamento jurídico brasileiro enfraqueceu a figura do fiel depositário. Contudo, os credores ainda podem se valer de outros argumentos, na esfera penal, já que a Súmula nº 25 não implica impunidade para o depositário, além de permanecer o dever de indenização. Daí a necessidade de que o credor seja diligente ao eleger o fiel depositário.
Priscila Arone Coutinho é advogada, especialista em direito empresarial e em direito processual civil r coordenadora da equipe do Luchesi Advogados responsável pela análise de contratos e garantias em operações de agribusiness