O ingresso de dinheiro aos cofres públicos encontra na atividade tributante uma de suas principais vias, permitindo ao Estado a consecução de suas finalidades próprias e precípuas em face de seus administrados.
Para tanto, a Constituição Federal facultou, a cada Pessoa Política, dentre outras coisas, o exercício de determinadas competências tributárias sempre, porém, associado à subsunção plena ao primado da legalidade que, em matéria tributária, foi, até mesmo, enfatizado (artigos 5º, inciso II, e artigo 151, inciso I, da CF).
De fato, na aludida seara, podemos denominá-lo de princípio da estrita legalidade, daí decorrendo que toda exigência tributária deverá identificar-se, minuciosamente, com os exatos comandos de sua respectiva norma (tipicidade fechada).
Queremos com essa breve introdução significar que qualquer pensamento fiscal antielisivo, em nosso ordenamento jurídico, assumirá foro de plena injuridicidade.
A elisão fiscal, nas precisas palavras de Roque Carrazza, “pode ser definida como a conduta lícita, omissiva ou comissiva, do contribuinte que visa impedir o nascimento da obrigação tributária, reduzir seu montante ou adiar seu cumprimento”.[1]
Ou seja, valendo-se da própria tipicidade cerrada, já referida e, da estrita legalidade tributária, o contribuinte, segundo o citado autor, “atua nos interstícios normativos, não entrando na relação jurídica tributária que tem por objeto a dívida tributária, ou entrando por caminhos que o levam a suportar carga fiscal menor”.[2]
Por tais razões, então, sentimo-nos confortáveis em permanecer com a tese, majoritária, acerca da inconstitucionalidade[3] de eventual[4] contexto antielisivo constante do parágrafo único do artigo 116 do CTN, acrescentado pela LC 104, de 2001, com a seguinte redação:
“a autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária”.
Ora, desautorizar o enquadramento ou não, pelo próprio contribuinte, de seus atos aos aspectos materiais pormenorizados da hipótese de incidência tributária equivaleria, por via oblíqua, a maltratar a estrita legalidade tributária que, aliás, é cláusula pétrea, imodificável, inclusive, por emenda constitucional (artigos 60, parágrafo 4º e 5º, inciso II, e artigo 151, inciso I, da CF).
A legalidade no campo tributário é, pois, absoluta, não aceitando qualquer elasticidade que torne meramente recomendatórias as palavras constitucionais. Exige a atividade tributante um maximum de legalidade.[5]
Para Ives Gandra da Silva Martins,
“todas as hipóteses de imposição devem estar nela (lei tributária) plasmadas. Seu tipo é inextensível, sua reserva formal é absoluta. Tudo pode o fisco dentro da lei, nada fora dela. Pode brandir a espada da taxação, mas cabe ao contribuinte defender-se com o escudo da lei formal e material. Só pode estar obrigado por esta, por nenhuma outra”.[6]
Para o mesmo autor, ainda,
“a decorrência lógica da aplicação do princípio da tipicidade é que, pelo princípio da seleção, a norma tributária elege o tipo de tributo ou da penalidade; pelo princípio do numerus clausu’ veda a utilização de analogia; pelo princípio do exclusivismo torna aquela situação fática distinta de qualquer outra, por mais próxima que seja: e finalmente, pelo princípio da determinação conceitua de forma precisa e objetiva o fato imponível, com proibição absoluta às normas elásticas”.[7]
Qualquer norma antielisiva, então, estaria alheia ao próprio espírito intrínseco a nosso atual ordenamento jurídico, especialmente, no campo tributário que há de repousar, sobretudo, na segurança jurídica de suas relações (certeza do direito positivo, confiança nas relações jurídicas e previsibilidade dos efeitos normativos).
De fato, se um contribuinte opta, previamente, através de mecanismos lícitos, pela não realização do fato imponível do tributo ou pela prática de negócio jurídico tributariamente menos oneroso, tais manobras devem ser consideradas legítimas e eficazes, não condenadas pelo direito positivo, ainda que o beneficiem.[8] Ora, é do contribuinte e, não, do fisco a escolha de uma forma jurídica menos onerosa.
Do contrário, ficaria o contribuinte sempre ao talante do
“humor da fiscalização ou de interpretações cerebrinas dos fatos e das normas, na busca de mais recursos pelos detentores do poder, para compensar o excesso de dispêndios ‘pro domo sua’, à custa dos pagadores de tributos”.
Noutras palavras, a elisão fiscal coaduna-se com os desideratos de nosso atual Estado de Direito, fincado que está no império da lei, como expressão máxima da vontade popular. Com a legalidade, temos protegidas a liberdade e propriedade das pessoas, especialmente, diante da tributação.
Aceitar qualquer pensamento em contrário, com a devida vênia, seria o mesmo que prestigiar as consequências de um Estado verdadeiramente autoritário, absolutista, com o resgate ideológico daquilo que Alfredo Augusto Becker denominou de “maior equívoco na história da doutrina do Direito Tributário”, verificado em face da interpretação das leis tributárias, ocorrida com ênfase na Alemanha, com o nazismo, e na Itália, com o fascismo, entre os anos de 1919 e 1945.[9]
De fato, conforme o aludido autor, viu-se uma doutrina apoiada em legislação que fora imposta a todos os intérpretes e julgadores, como regra de conduta obrigatória e que estabeleceu que a obrigação tributária não poderia ser evitada ou minorada pelo ‘abuso das formas jurídicas’, abuso este que
“ocorreria quando, na juridicização de um fato ou efeito econômico, a pessoa utilizasse ou criasse uma estrutura jurídica perfeitamente legal (porém não usual naquela época e circunstâncias) a fim de evitar o tributo que a lei determinara incidir sobre uma diferente estrutura jurídica que era a usual”.[10]
Ou seja, o que se via era, justamente, o contexto e o modelo da malsinada norma antielisiva, sob a chancela da então denominada Teoria do Abuso das Formas, intimamente harmonizada, porém, apenas com regimes ditatoriais, em que a vontade do governante é que impera.
Já em nosso caso e, em nossa época atual, que não correspondem a uma ditadura, aqui de há muito já sepultada, qualquer impedimento ao denominado planejamento tributário (à elisão fiscal), dentro de uma moldura que seja lícita, a critério do contribuinte, significará nítida afronta à legalidade, à tipicidade e, por fim, ao próprio Estado Democrático de Direito.
Em última análise, voltará a representar, aproveitando-nos das palavras de Becker, uma verdadeira “regressão da atitude mental jurídico-tributária” em nosso atual ordenamento.[11]
[1]Curso de Direito Constitucional Tributário. 23ª edição, revista, ampl. e atual. até EC53/06. Malheiros: São Paulo, 2007, p.323.
[2]Idem ob. cit., p. 323.
[3]Sua inconstitucionalidade está sendo arguida em ação direta de inconstitucionalidade junto ao E. STF, cuja decisão ainda se aguarda (ADI nº. 2446-9, Rel. Min. Carmen Lúcia). Uma eventual eficácia desta norma estaria a depender, ainda, de qualquer forma, de elaboração legislativa infraconstitucional, até o presente momento, inexistente.
[4]Dizemos ‘eventual’ por haver manifestações doutrinárias no sentido, até mesmo, de nem existir a natureza antielisiva nesta norma, que apenas estaria, a bem da verdade, corroborando entendimento jurisprudencial acerca da desconsideração de atos ou negócios jurídicos praticados pelo contribuinte em meio, apenas, à fraude (Daniela Victor de Souza Melo. Elisão e Evasão Fiscal – O Novo Parágrafo Único do Artigo116 do Código Tributário Nacional, com a Redação da Lei Complementar n. 104/2001. In Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo: Editora Dialética, v. 69, 2001, p.68. Percebe-se que para essa corrente, o afastamento da antielisividade já adviria do próprio resultado de hermenêutica da norma em comento.
[5]Roque Carrazza. Idem ob. cit., p., 257.
[6]Ives Gandra da Silva Martins. Norma Antielisão e o Princípio da Legalidade. InRevista Dialética de Direito Tributário. São Paulo: Editora Dialética, v. 173, 2010, p.96. Esclarecemos nos parênteses.
[7]Curso de Direito Tributário. Coord. Ives Gandra da Silva Martins e outros. São Paulo: CEEU/FIEO e Saraiva, 1982, pp. 57/58. In ob. cit., p.97.
[8]Idem ob. cit., 323.
[9]Carnaval Tributário. Saraiva: São Paulo, 1989, p.103.
[10]Alfredo Augusto Becker. Idem ob. cit., p.103.
[11]Idem ob. cit., p. 113.