Recordo-me de ter adquirido, na adolescência, um belo exemplar traduzido da Divina Comédia, de Dante Alighieri. A obra-prima da literatura mundial, que narra a odisséia de Dante, guiado pelo Poeta Virgílio pelos círculos do Inferno e do Purgatório até atingir o Paraíso, me encantou não apenas pela rara felicidade com que um escritor conseguiu, através das palavras, fazer com que o leitor criasse em sua mente os mais diversos cenários, às vezes belos, às vezes assustadores, mas que conseguem marcar a memória sem nunca terem sido vistos. O que de fato me impressiona na obra é que ela traz em si uma hipótese insólita: um ser vivo em uma jornada pelo Inferno, Purgatório e Paraíso, coisa que talvez só possa acontecer no mundo espiritual. Talvez.
Quando me descobri advogado e passei a conviver de perto com as agonias dos particulares que buscam no Poder Judiciário o amparo contra as ilegalidades e arbitrariedades praticadas pelo Estado, senti-me tal qual Virgílio. Logo aprenderia, no entanto, que, ao contrário do poema épico, o advogado, após conduzir seu cliente pelos círculos do Purgatório e obter decisão favorável transitada em julgado, terá à sua frente novamente o Inferno e não o esperado Paraíso de Beatriz[1].
Muito tem sido dito e escrito a respeito da Emenda Constitucional 62/2009. Rotulada por muitos como “Emenda do Calote”, ela veio uma vez mais alterar o regime de pagamento de precatórios, concedendo novos benefícios à Fazenda Pública devedora no que diz respeito aos prazos e, principalmente, condições de pagamento de suas dívidas.
Na verdade, as alegações dos entes da Federação quanto à dificuldade de adimplência das dívidas oriundas de sentenças judiciais não são recentes. O que causa perplexidade é que as “moratórias constitucionais” já decretadas durante a existência do jovem Estado Democrático de Direito Brasileiro deixam transparecer que a questão se agrava cada vez mais, e o problema está longe de ser solucionado[2].
Enfim, quais são as inconstitucionalidades trazidas pelo novo “remendo” constitucional?
Além das costumeiras violações à segurança jurídica, ao ato jurídico perfeito, à coisa julgada (artigo 5º, caput e inciso XXXVI, da CF/88) e ao direito de propriedade (artigo 5º, inciso XXII, da CF/88), que são decorrentes da constitucionalização indevida das moratórias, as novas regras introduzidas pela EC 62/2009 afrontam também a inafastabilidade do Poder Judiciário, o devido processo legal, a ampla defesa, a razoável duração do processo (artigo 5º, incisos XXXV, LIV, LV e LXXXVIII da CF/88) e o princípio da igualdade das partes (artigo 5º, caput e inciso LIV).
O extenso e cansativo rol de inconstitucionalidades tem várias causas, mas uma, em especial, tem causado arrepios na espinha das partes e, principalmente, de seus advogados: a compensação forçada dos valores líquidos e certos dos precatórios com créditos tributários existentes em nome de seus beneficiários.
A determinação está contida no parágrafo 9º do artigo 100 da CF/88[3], e na prática possibilita que o numerário representativo da decisão já albergada pela coisa julgada em favor do particular seja apropriado pelo Fisco compulsoriamente, para adimplemento de créditos tributários que podem até mesmo ser indevidos.
Perceba-se que o referido dispositivo prevê a compensação do precatório com créditos tributários “inscritos ou não em dívida ativa”. Ou seja, apesar da ressalva contida na parte final do dispositivo quanto aos créditos “cuja execução esteja suspensa em virtude de contestação administrativa ou judicial”, o que tem ocorrido, na prática, sinaliza o cenário desanimador que surge para os credores da Fazenda Pública.
Chamada a apresentar os débitos existentes em nome do titular do precatório, a Fazenda Pública, em especial a Fazenda Federal, tem apresentado indiscriminadamente débitos que são objeto de execuções fiscais nas quais há discussão a respeito do reconhecimento de prescrição e decadência, débitos suspensos pelo adimplemento regular de parcelamento concedido por lei — em decorrência da própria determinação da EC 62/2009 — e até mesmo débitos extintos pelo pagamento.
A falta de cuidado por parte da Fazenda Pública no momento da apresentação dos créditos tributários a ser compensados com o precatório tem causado dor de cabeça não apenas às partes e seus advogados. Os próprios magistrados encontram dificuldades para decidir se a compensação deve ser deferida ou não, diante das ilegalidades e inconstitucionalidades que evidentemente surgirão em alguns casos, se o encontro de contas for deferido.
Outra preocupação frequente dos juízes está relacionada com as consequências práticas da compensação para os processos de execução, que a partir de agora ficarão suspensos por tempo indeterminado, abarrotando ainda mais as varas e gabinetes. Em despacho pessoal com renomada juíza federal da Seção Judiciária do Distrito Federal, fui confidente da informação de que, ainda que haja o indeferimento do pedido de compensação, não será possível determinar-se a expedição do precatório ou o levantamento da parcela — nos casos em que o precatório tenha sido expedido em 2010, quando a EC 62/2009 já estava vigente, porém ainda não havia qualquer decisão quanto ao pedido de compensação.
Isso porque existe determinação expressa do Conselho de Justiça Federal no sentido de que a expedição de precatório ou o levantamento do valor disponibilizado em conta somente aconteçam após o trânsito em julgado[4] da decisão que determinar ou não a compensação.
Certo é que a decisão pode ser atacada por agravo de instrumento[5], o que impedirá a formação do precatório ou o levantamento de valores já disponibilizados — nos casos de precatórios expedidos na vigência da EC 62/09, mas que não tenha sido proferida, previamente, qualquer decisão a respeito da compensação. Ainda mais certa é a constatação de que os incidentes processuais surgidos no curso de execuções movidas contra a Fazenda Pública levam em média de seis a oito anos para transitar em julgado, normalmente após decisão do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal.
No caso da EC 62/2009, devemos considerar que o prazo para trâmite do agravo de instrumento tende a ser maior, já que a imposição contida na emenda, na prática, trouxe para o âmbito da execução discussões a respeito de questões processuais e até mesmo quanto à legalidade dos débitos a serem parcelados.
A narrativa serve para trazer à evidência a constatação de que, enquanto não transitar em julgado a decisão que determinar ou não a compensação, o crédito do precatório sofrerá correção monetária pelos índices aplicados à caderneta de poupança, enquanto que o crédito tributário continua sendo corrigido pela Taxa Selic[6].
Nem se diga que, enquanto é obrigado a atuar em “novos litígios” surgidos no âmbito da execução, o advogado não verá livre da compensação os valores que são seus por contrato. É que nenhuma ressalva foi feita quanto aos honorários contratuais e, caso os créditos tributários sejam em montante suficiente para atingir o percentual contratado — e na maioria das vezes atrelado ao montante a ser levantado pelo êxito na ação, como nós, advogados, sabemos —, tudo indica que haverá a compensação, ainda que os honorários estejam devidamente destacados em nome do advogado.
Assim, a compensação forçada é, por um lado, uma forma de a Fazenda Pública diminuir os gastos orçamentários anuais, pois inúmeros precatórios deixarão de ser expedidos enquanto não houver o trânsito em julgado da decisão que a determina, representando, por outro lado, verdadeira sanção política, ou seja, “norma enviesada a constranger o contribuinte, por vias oblíquas, ao recolhimento do crédito tributário”[7].
Surgimento de novos litígios no bojo da execução, perpetuação do processo, desigualdade no critério de correção monetária, desrespeito dos honorários contratuais formam o cenário enxergado pelo advogado e seu cliente quando da execução do título judicial, que diverge em muito daquele vislumbrado por Virgílio e Dante quando alcançaram o Paraíso. A cena dantesca decorrente da compensação forçada nos conduz apenas a uma conclusão, capaz de derrubar por terra a crença de alguns de que a emenda veio para benefício do credor da Fazenda Pública: bastava que a compensação fosse facultada ao credor da União, e não imposta, como fez a EC 62/2009.
As questões envolvendo a compensação forçada e as demais inconstitucionalidades que permeiam a EC 62/2009 deverão ser decididas pelo Supremo Tribunal Federal. A emenda é objeto de quatro ações diretas de inconstitucionalidade [8], distribuídas à relatoria do Exmo. Ministro Ayres Britto, e incluídas na pauta de julgamentos do Plenário da próxima quinta-feira (16/6). É importante ressaltar que o momento é propício para a discussão do tema, não apenas pelo início do julgamento das ADIs, mas também porque o STF bem sinalizou recentemente, ao suspender a eficácia do artigo 2º da EC 30/2000[9], que o Poder Judiciário não fechará os olhos para as inconstitucionalidades cometidas contra os credores da Fazenda Pública. Dante, Virgílio e toda a comunidade jurídica esperam celeridade e juridicidade no julgamento que pode extirpar as inconstitucionalidades impostas pela emenda à longa viagem pelo Poder Judiciário.
[1] Narra a história que Beatriz foi a mulher amada por Dante desde a infância, com quem ele, porém, nunca se casou. A morte repentina de Beatriz, provavelmente por volta do ano de 1290, deixou Dante inconsolável e o empurrou definitivamente para os estudos filosóficos e poéticos. Na obra mencionada, Beatriz passa a ser a guia de Dante quando o poeta chega com Virgílio ao Paraíso.
[2] Quando da promulgação da Carta de 1988, o Constituinte Originário fez incluir no artigo 33 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias a possibilidade de parcelamento dos precatórios judiciais pendentes de pagamento em oito parcelas anuais. Em 2000, quando da aprovação da Emenda Constitucional 30, inseriu-se no ADCT o artigo 78, que possibilitou o parcelamento dos precatórios em dez vezes. A Emenda Constitucional 62, apesar de ter concedido prazo diferenciado de pagamento apenas às Fazendas estaduais, municipais e distritais, trouxe para a Fazenda Pública em geral o benefício da compensação obrigatória do crédito do precatório com os débitos tributários de titularidade do credor da Fazenda.
[3] CF/88: “Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para esse fim.
[...]
§ 9º. No momento da expedição dos precatórios, independentemente de regulamentação, deles deverá ser abatido, a título de compensação, valor correspondente aos débitos líquidos e certos, inscritos ou não em dívida ativa e constituídos contra o credor original pela Fazenda Pública devedora, incluídas parcelas vincendas de parcelamentos, ressalvados aqueles cuja execução esteja suspensa em virtude de contestação administrativa ou judicial.”
[4] A Resolução nº. 122 do CJF afirma, em seu art. 7º, inc. XV:
“Art. 7º O juiz da execução informará no ofício requisitório os seguintes dados, constantes do processo:
XV – em se tratando de precatório, a data do trânsito em julgado da decisão que deferiu o abatimento para fins de compensação”.
[5] Tudo indica que o agravo de instrumento a ser interposto contra a decisão sobre a compensação será dotado automaticamente de efeito suspensivo, travando o trâmite da execução. É essa a disposição, dentre outras referentes à compensação, contida no Projeto de Lei de Conversão nº. 13/2011, relacionada à MP 517/2010. O PL já tramitou pela Câmara e aguarda agora o trâmite no Senado. Consta do art. 34 do PL, caput e §1º: “Da decisão mencionada no art. 33 desta Lei, caberá agravo de instrumento. § 1º O agravo de instrumento terá efeito suspensivo e impedirá a requisição do precatório ao Tribunal até o seu trânsito em julgado.”
[6] A leitura dos §§ 2º e 3º da Resolução nº. 122 do CJF confirma que os créditos tributário e do precatório passarão a ser atualizados pelos mesmos índices apenas após o trânsito em julgado da decisão que determina a compensação:
“§ 2º Tornando-se definitiva a decisão que determinar a compensação, deverá ser intimado o órgão de representação judicial da entidade executada para que:
I – informe os valores atualizados relativamente aos débitos deferidos, discriminadamente por código de receita, considerando como data-base da referida atualização a do trânsito em julgado da decisão que autorizou a compensação;
II – proceda à suspensão da exigibilidade do débito, sob condição resolutória, até seu efetivo recolhimento.
§ 3º A partir da data final da atualização a que se refere o parágrafo anterior, os valores a serem compensados serão corrigidos pelos mesmos índices aplicados aos precatórios”.
[7] ADI nº. 173, publicado no DJ de 20/03/2009.
[8] (i) ADI nº. 4.357, ajuizada em 15/12/2009; (ii) ADI nº. 4.372, ajuizada em 22.01.2010; (iii) ADI nº. 4.400, ajuizada em 25/03/2010; e (iv) ADI nº. 4.425, ajuizada em 08/06/2010.
[9] Foi publicado no dia 19/05/2011 o acórdão proferido na Medida Cautelar na ADI nº. 2.356, no qual o STF suspendeu a eficácia do art. 2º da EC nº. 30/2000, que introduziu o art. 78 no ADCT, dispositivo que instituiu o parcelamento do precatório em até dez anos.