Este é e será um tema sujeito a debates de toda ordem, quer por aqueles que defendem sem qualquer reparo ou freio o disposto no conhecido parágrafo 3º do artigo 49 da Lei de Recuperação Judicial (Lei nº 11.101, de 2005), quanto por aqueles mais preocupados com a recuperação da empresa e, portanto, defendendo os princípios do artigo 47, tendo em mente o "objetivo de viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor" e, portanto, "latu senso" da empresa e tudo que ela representa como "função social" e de "estímulo à atividade econômica".
Até o presente momento, a jurisprudência conhecida, de forma geral tem dado amparo integral ao mencionado inciso legal - "tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis" .... "seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial" -, sempre reconhecendo independentemente da natureza dos bens alienados fiduciariamente, quer presentes ou futuros, como intangíveis e, portanto, não mais fazendo parte do ativo da empresa em recuperação, pois são do "credor titular da posição de proprietário fiduciário", para se usar da expressão da lei.
Esta discussão tem reflexos práticos hodiernamente, principalmente no setor sucroalcooleiro, que atingido pela chamada "crise mundial", tem se socorrido com frequência da recuperação judicial, mesmo tendo contra si os percalços de serem dela excluídos os créditos dos credores fiduciários, pois sob esse manto firmaram inúmeros e inumeráveis contratos de mútuo com os estabelecimentos bancários, tendo como garantia da alienação fiduciária até mesmo da cana plantada, isto mesmo, da cana plantada, e na sequência do seu produto após a necessária transformação, ou seja, açúcar ou etanol, dos quais não poderá dispor, para reforçar seu capital de giro, mesmo em regime de recuperação judicial pois, por antecipação, estão alienados aos bancos credores e sob intensa fiscalização.
As consequências nefastas desta situação constrangedora, são por demais óbvias que dispensam qualquer comentário. Mas então o que fazer para não soçobrar a empresa em recuperação, principalmente porque os credores fiduciários, em situação de absoluto privilégio, não se comovem com a situação, exercendo os seus direitos, às custas relevar-se os princípios da recuperação judicial, estatuídos pelo referido artigo 47 - sempre citado, mas nos momentos importantes, simplesmente ignorados.
Entretanto, é ainda incomum a discussão travar-se considerando a natureza jurídica do contrato de alienação, muito debatido no passado, quando da criação do instituto da alienação fiduciária, onde desde então se distinguia que não seriam passíveis de alienação fiduciária os bens fungíveis e consumíveis, como por exemplo a cana e subsequentemente seus produtos açúcar e etanol, tornando sem efeito prático a alienação fiduciária.
Mas qual a razão desta distinção? Para facilitar o entendimento será mais fácil apoiar-se na jurisprudência já sedimentada sobre o tema, aqui resumida na decisão do então ministro Eduardo Ribeiro (cf. Agravo no Recurso Especial nº 243.519 - Mato Grosso do Sul) que aduz: "Ora, se são consumíveis, exatamente porque se destinam a serem usados pelo comerciante ou industrial, na atividade que lhe é especifica, é evidente incoerência supor-se que deva ele conservá-los para entregá-los ao credor, em caso de não pagamento do débito. Ter-se-ia singular situação de alguém fazer um empréstimo e, ao mesmo tempo, assumir a obrigação de manter em estoque mercadorias de valor equivalente, de que não poderia utilizar-se, posto que de sua utilização resulta o consumo. Em relação a tais bens, é ilógico admitir-se alienação fiduciária e não há lei que obrigue a tolerá-la, ao contrário do que sucede com os fungíveis" e a definição de bens consumíveis se encontra no artigo 86 do Código Civil, o que aqui se aplica.
Será que há algo mais atual do que esta sábia decisão? Sempre aplicável em situações semelhantes, na hipótese de recuperação judicial, reinterpretando-se o mencionado parágrafo 3º , do artigo 49 da Lei de Recuperação, quando o caso, de forma a preservar-se os princípios do artigo 47 e, portanto, a empresa.
Diga-se também que este tema - inadmissibilidade da alienação fiduciária de bens fungíveis e consumíveis - foi exaustivamente discutido no Superior Tribunal de Justiça, tanto que em decisão proferida nos embargos de divergência no recurso especial nº 19.515-8, já assim se decidiu, "apaziguando a jurisprudência revolta" sobre o tema, o que se pode ler de sua ementa.
Ressalte-se que na procura desta linha de raciocínio, mas já sob a ótica da Lei nº 11.101, de 2005, portanto, aplicada a hipótese concreta, o Tribunal de Justiça de Pernambuco, pelo ilustre relator do agravo de instrumento 192.551-9, desembargador Eduardo Augusto Paurá Peres, com rara felicidade em douta decisão monocrática houve por bem liberar os "estoques de açúcar arrestados pelo juízo da 3ª Vara Cível da Comarca de Santo Agostinho, nos autos do processo nº 210.2009.00.1934-9, com sua venda e depósito do respectivo " quantum " em conta corrente à disposição do juízo da recuperação, com liberação de acordo com a necessidade orientada pelo administrador, objetivando viabilizar a recuperação, de valor e fim social bem mais elevado. Deverá contudo, enquanto não decidida a questão quanto a natureza do contrato de alienação fiduciária pelo juiz da recuperação, substituir-se a garantia do crédito, em prazo razoável de 10 dias", baseando-se no conceito de que é inadmissível a constituição de alienação fiduciária sobre bens fungíveis e consumíveis. Sem dúvida sábia e prudente decisão.
Este é o tema, que todos os interessados no assunto, certamente estarão atentos ao seu desfecho, mas que, em nossa opinião, certamente decidirá pela nulidade da alienação fiduciária, pois mal constituída sobre bens fungíveis, mas consumíveis pela sua própria natureza, interpretando-se de forma correta o artigo 47 da Lei de Recuperação.
Luiz Augusto de Souza Queiroz Ferraz é advogado em São Paulo