Estamos enfrentando um momento de grande instabilidade econômica, uma crise mundial que está provocando uma retração dos negócios. As ofertas de crédito rarearam, até para capital de giro. Esse cenário já provoca um aumento no número de empresas que necessitam buscar uma proteção legal como passo de um necessário processo de reestruturação de suas operações. A recuperação judicial seria este remédio - e vale lembrar que ela não é uma substituta da concordata, mas uma ferramenta que possibilita à empresa uma ampla reestruturação de seu passivo.
Contudo, até mesmo por ser um dispositivo trazido por uma lei nova - a Lei nº 11.001, de 2005 -, a recuperação judicial vem enfrentando certos obstáculos para se tornar um efetivo instrumento de ajuda às empresas endividadas e sem liquidez. Entre as questões mais importantes, verifica-se a prática de atos em desconformidade com a nova Lei de Falências, como a invasão da competência dos magistrados que conduzem os processos de recuperação, por parte de outros juízes (especialmente trabalhistas), bem como a exclusão de certos credores do procedimento.
Algumas empresas vêm sofrendo constrição sobre seus bens, perpetradas por outros juízes fora do âmbito da recuperação, mesmo dentro do prazo de proteção de 180 dias. O prosseguimento das execuções individuais contra empresas em recuperação judicial viola o ordenamento jurídico e a lógica, uma vez que não respeita a formação do concurso de credores. O pagamento aos credores trabalhistas é parte do processo e se fará nos termos do plano de pagamento que será votado em assembleia de credores. Privilegiando um credor em uma execução individual, os demais serão preteridos, muitos deles da mesma classe, e haverá uma quebra no planejamento financeiro da devedora e no fluxo dos pagamentos aprovados em assembleia pela maioria dos credores.
Contudo, o Poder Judiciário vem interpretando a lei de modo irrepreensível. Como exemplo, citamos um recente acórdão proferido em um conflito de competência julgado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), relatado pelo ministro Luís Felipe Salomão, em que se decidiu pelo reconhecimento da competência exclusiva do juízo onde se processa o pedido de recuperação judicial para versar sobre o pagamento aos credores. O acórdão garantiu a sujeição do credor aos efeitos da recuperação, mesmo no caso da aprovação do plano de pagamentos (e consequente novação da dívida) ter ocorrido após o decurso do prazo de 180 dias, pois a lei prevê que a aprovação ao plano provoca a extinção das dívidas sujeitas ao procedimento e sua substituição por novas dívidas (novação), aprovada em assembleia. Evita-se, assim, a criação de duas classes de credores: a que se sujeita ao procedimento juntamente com os demais e a que não se sujeita simplesmente porque é parte de um processo de execução individual, que se reiniciou após o decurso do prazo de suspensão.
Outro entrave às recuperandas é causado pela constituição de garantias outorgadas nos contratos de financiamento. Tem-se entendido que os contratos de cessão ou alienação fiduciária de recebíveis não estão sujeitos ao procedimento, nos termos do artigo 49 da referida lei - em uma redação não prevista no projeto original -, o qual prevê que créditos garantidos por institutos como a alienação fiduciária não estariam sujeitos à recuperação judicial.
Em alguns casos, 100% do futuro faturamento da empresa já está comprometido com os bancos, o que inviabiliza a recuperação do devedor. Ou seja, a empresa não será beneficiária dos recursos oriundos de sua produção e venda, comprometendo a sua capacidade de honrar compromissos com os seus fornecedores e até mesmo com os seus funcionários, paralisando suas atividades. Alguns credores, arbitrariamente, consideram os contratos vencidos, executando a garantia tão logo haja a simples notícia que a empresa financiada impetrou um pedido de recuperação judicial, mesmo quando a empresa está em dia com os seus pagamentos, inclusive acessando os valores depositados em conta-garantia. Ou seja, o crédito não está sujeito ao procedimento, mas o credor utiliza a recuperação para declarar vencido o contrato.
Inicialmente, alguns juízes determinavam o desbloqueio da conta. Contudo, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), que dispõe de uma câmara especializada, vem pacificando o entendimento no sentido de que, se o contrato prevê a instituição de garantia por alienação fiduciária, o crédito não está sujeito à recuperação. Atualmente, alguns magistrados, em alinhamento com as decisões da corte paulista, nem concedem mais liminares no sentido de desbloquear os valores, ou permitem que o próprio credor fique como depositário deles, impedindo qualquer acordo. Em tese, o bloqueio dos valores levaria as partes a negociar, forçando uma aproximação entre a empresa e instituições de crédito. Mas não é o que vem acontecendo na maioria dos casos, especialmente com empresas de menor porte.
Há a decisão da Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES), dada em um recente julgamento de um processo relatado pelo desembargador Jorge Coutinho, em que o credor com garantia de alienação fiduciária de recebíveis permaneceu sujeito ao procedimento. O acórdão conclui que a lei prevê o benefício para bens móveis ou imóveis, e que os títulos de crédito não se enquadrariam em nenhuma dessas categorias.
Como se vê, a questão das garantias com os recebíveis é polêmica e atual e decisiva especialmente para a manutenção das empresas de pequeno e médio porte. Por essa razão, não se pode simplesmente ignorar cada situação concreta. Se necessário, deve-se realizar uma revisão legislativa para que se obtenha um reequilíbrio de forças, para que, ao menos, sejam excluídos da recuperação os recebíveis que já existiam à época do pedido, mas liberando para a recuperanda os futuros, que ainda não existiam até o dia da impetração.
Certamente, reflexões são necessárias para otimizar os instrumentos criados pela nova Lei de Falências. Após poucos anos de aplicação da legislação, pode-se identificar várias recuperações judiciais que tiveram trajetórias de sucesso. Porém, é necessária uma mudança de postura, seja dos aplicadores da lei, seja da própria coletividade. A mudança de cultura é ainda o maior entrave para o sucesso da nova lei. As instituições financeiras, especialmente as públicas, poderiam liderar um movimento de fomento às empresas em recuperação, ou ao menos poderiam dar o exemplo e negociar os créditos não incluídos na recuperação, estendendo o vencimento da dívida, com a consequente redução da retenção mensal, para permitir que parte do faturamento da devedora permaneça no seu caixa, o que já vem ocorrendo em alguns casos envolvendo grandes bancos privados. Caso contrário haverá o risco de que a lei, que foi criada para ser a UTI das empresas, vire seu necrotério, como ocorria na antiga concordata.
Julio Kahan Mandel e Paulo Calheiros são advogados e sócios do escritório Mandel Advocacia